Como Marvel e DC estão tentando fortalecer a presença feminina nas HQ’s

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Falar de feminismo e representatividade feminina é sempre um assunto complicado. Não tanto pelo conteúdo da conversa em si, mas sim pelas enormes nuvens de dúvidas e conceitos errôneos que giram ao redor do tema – o que meio que faz parte do “conteúdo da conversa em si”, garantindo assim que meu parágrafo introdutório nesse artigo seja completamente imprestável.

Filmes, livros, games, revistas em quadrinhos e outros tipos de produções artísticas e de entretenimento são, não só engrenagens de mercados bilionários e retratos da nossa sociedade, como também ferramentas ativas de mudança na comunidade onde estão inseridos. Eu sei que eu soei como um professor de sociologia (que sonho seria usar um daqueles suéteres com cotovelo costurado), mas basicamente o que eu quis dizer é que filmes, HQs e afins tem poder de mudar a sociedade de maneira positiva ou negativa.

Enfim, considerando que o Dia Internacional das Mulheres chegou, nós separamos um minutinho para dar uma olhada em exatamente como a Marvel e a DC Comics estão trabalhando para fortalecer a presença feminina na indústria americana de quadrinhos – porque sim, há um trabalho sendo feito por essas duas editoras e a gente precisa notar isso.

Agora, antes de eu prosseguir, deixe-só eu esclarecer uma coisa: não importa quantos elogios eu faça, AINDA NÃO É O SUFICIENTE. Certo? A diversidade de gênero e étnica nos quadrinhos norte-americanos AINDA É escassa e as HQs de super-heróis ainda são feitas, majoritariamente, por homens, para homens e com personagens masculinos. As coisas AINDA são muito desiguais. Porém, contudo e todavia, lentamente esse trabalho está mudando (a passos de tartaruguinha) e com resultados financeiros aparecendo.

Primeiro de tudo, o que está errado.

Em primeiro lugar, vamos definir aqui alguns fatos para contexto. Quadrinhos estão aí na labuta diária, no corre rotineiro, há mais de 70 anos (só o Batman tem 75, rapaz). E a gente sabe que há 70 ano, o bicho pegava nessa história de “direitos das mulheres”, “direitos dos negros” – e quando eu digo “o bicho pegava” eu estou usando uma paradinha chamada “eufemismo”.

Porém, surpreendentemente, as coisas no início da indústria não eram tão díspares quanto a gente imagina. Lá nos anos 30 e 40, existia uma quantidade bem aceitável de personagens femininas protagonizando revistas em quadrinhos e tirinhas (como a Lady Fantasma, Brenda Starr e a Red Tornado – a primeira super-heroína em quadrinhos!), bem como de mulheres trabalhando na indústria, como Rose O’Neill, Kate Carew, Ethel Hays, Dale Messick e outras. 

As coisas começaram a mudar entre os anos 60 e 70, quando revistas em quadrinhos pararam de ser vendidas em mercados nos EUA e passaram a ser comercializadas em lojas especializadas no assunto (as comic shops), o que passou a atrair um público mais jovem e masculino que, por sua vez, serviu como espelho para as produções do mercado nos anos seguintes.

Para se ter uma noção do contexto atual da situação, eis alguns dados levantados por esse artigo fantástico da FiveThirtyEight:

  • Das mais de 6827 personagens da DC Comics, apenas 29.3% são femininas – matemática pra você: dá 2000 personagens;
  • Das mais de 15591 personagens da Marvel Comics (eita!), apenas 24,7% são mulheres – continha pra você: 3850 personagens;
  • Dentre as personagens REALMENTE famosas das duas editoras (ou seja, com mais de 100 aparições nos gibis – 294 da DC e 414 da Marvel), apenas 29% da DC são mulheres (85) e apenas 31,1% da Marvel são mulheres (128).
  • Quando a gente fala de mulheres TRABALHANDO em quadrinhos então, a coisa piora: apenas 10% (isso, DEZ PORCENTO) dos artistas envolvidos em gibis da DC Comics em 2014 foram mulheres. Na Marvel, a situação é ainda pior: só 8,9% são mulheres.

Então, novamente: HQs de super-heróis AINDA SÃO feitas por homens, para homens e com personagens masculinos. Mas o foco desse texto é: as coisas estão mudando.

O que está acontecendo?

Muslim Ms Marvel

Em Fevereiro de 2015, Marvel Comics e DC Comics publicaram cerca de 26 títulos regulares protagonizados exclusivamente por personagens femininas (não entram na lista títulos como All New X-Men, mesmo Jean Grey sendo sua principal estrela).

Parece pouco  considerando que as duas editoras juntas lançam quase uma centena de títulos todos os meses, mas a parte boa vem agora: no mesmo mês no ano anterior, apenas 12 revistas eram protagonizadas por mulheres.

Porém, contudo e todavia, essa nem é a parte mais suculenta e saborosa do que está acontecendo entre as HQs de super-heróis no momento. Claro que mais do que dobrar a quantidade de títulos protagonizados por mulheres é legal e tudo mais, mas o pulo do gato vem com o fato de que são HQs RELEVANTES.

A HQ mensal da Arlequina, por exemplo, está frequentemente entre as 10 mais vendidas do mês nos EUA. A personagem está tão popular que a DC Comics não teve medo de investir num anual no ano passado em que suas páginas tinha cheiros especiais, inclusive de maconha, além de investir nela numa série mensal de capas variantes em 2015 – ou seja, a DC não teve medo de colocar a Arlequina na capa de praticamente todos os gibis que lançou em Fevereiro.

Atualmente, Thor deixou de ser um homem e passou a ser uma mulher, também numa das HQs mais vendidas atualmente no mercado americano. A nova heroína (ainda sem identidade revelada) possui uma posição de destaque bem grande no Universo Marvel, assim como a Jean Grey (protagonista de All New X-Men), a Gamora (Guardiões da Galáxia), a Capitã Marvel (Os Vingadores) e a Viúva Negra (que tem uma das séries mensais mais elogiadas pela crítica especializada) – do lado da DC, a Mulher-Gato virou chefe do crime em Gotham, a Mulher-Maravilha andou combatendo a obsessão com o corpo feminino, uma mulher se tornou a nova Lanterna Verde e a Batgirl passou por uma reformulação para ser a porta-voz da editora com o público jovem.

Há algumas semanas, a nova Ms. Marvel foi usada como símbolo da luta contra a islamofobia na cidade de São Francisco, nos EUA, e uma garotinha de 11 anos escreveu uma carta para a DC pedindo por mais heroínas e acabou virando uma.

Pode parecer que essas ações são pequenas e esporádicas, mas HQs “poder de mudar a sociedade de maneira positiva ou negativa”, certo? Pois bem, vamos falar de negócios.

Além da nova Thor e da Arlequina aparecerem constantemente entre as 10 HQs mais vendidas do mês nos EUA, HQs como a da Batgirl, da Mulher-Maravilha e da Garota-Esquilo (!) andam vendendo mais cópias do que heróis tradicionais e/ou mais populares como o Lanterna Verde, Homem de Ferro, Flash, Aquaman, Rocket Raccoon e afins.

Um outro aspecto bem importante em termos financeiros vem do mercado digital. Lembra que eu comentei acima que o ambiente das comic shops ajudou a “filtrar” o público de histórias em quadrinhos nos EUA, tornando-o majoritariamente masculino e, assim, moldando o perfil do que era produzido pelas editoras? Pois bem, HQs de super-heroínas encontraram seu público principalmente no mercado digital.

As HQs vendidas digitalmente para o mundo todo através do Comixology abriram portas para um público bem mais aberto a novidades do que o “padrão” norte-americano e o maior exemplo disso é a série da Ms. Marvel, sustentada apenas pelas suas vendas digitais (é uma das séries mensais mais vendidas no setor).

Mesmo o fechado e hostil público de comic-shops nos EUA está se curvando às HQs de super-heroínas: o resumo das re-encomendas das comic-shops em Fevereiro revelou que os 4 gibis mais re-encomendados são protagonizados por mulheres e, dos 25 títulos mais re-encomendados, 12 são com super-heroínas – explicação: nos EUA, os donos de comic-shops encomendam quantas cópias de um título eles querem, baseado na demanda da sua própria loja. Quando a demanda é maior que o encomendado inicialmente, eles fazem novas encomendas para poder suprir essas vendas extras. Isso significa basicamente que HQs de super-heroínas estão vendendo mais do que os lojistas esperavam.


Ok, e o futuro?

Mesmo com o trabalho (modesto) que Marvel e DC Comics estão fazendo com representação feminina nas HQs de super-heróis, a situação ainda é muito injusta e o ambiente ainda é muito hostil com mulheres.

As coisas estão sim melhorando, como as informações acima mostram, mas o passo é pequeno e a distância a percorrer é grande.

O futuro, porém, parece mais promissor. Novas HQs protagonizadas por mulheres deverão ser lançadas em breve (uma equipe feminina dos Vingadores deverá aparecer na Marvel nos próximos meses, por exemplo) e super-heroínas começam a ganhar destaque lentamente FORA das páginas: Mulher-Maravilha e Capitão Marvel já tiveram seus filmes anunciados, a Sony estava planejando um longa só com heroínas ligadas ao Homem-Aranha e a Supergirl ganhará uma série de TV em breve – e Peggy Carter acabou de estrelar a primeira temporada de Agent Carter.

Essa exposição para um público que não conhece muito de quadrinhos vai atrair novos e novas leitores/as interessados/as em super-heroínas, que por sua vez encontrarão um mercado um pouco menos hostil com mulheres – o que por sua vez vai incentivar uma maior diversidade de público, de conteúdo e, posteriormente, de artistas também.

Mesmo que as coisas pareçam injustas e machistas agora, a verdade é que pouco a pouco essa realidade vem mudando. Pra melhor, claro. 

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